Eu seria punk se minha mãe deixasse

   "Eu nunca fiquei bêbado mas eu seria punk se minha mãe deixasse..."

    Eu sempre fui a mais covarde dos meus amigos. Pera, deixa eu começar em um tom menos depreciativo.

    Eu sempre fui a mais quieta dos meus amigos. De vez em quando, alguém me diz que eu era mais alegre quando eu era mais nova, mas eu não me lembro disso. Ás vezes, me pergunto se as pessoas notam que eu ajo igual uma alma penada que acabou possuindo esse corpo por acaso e não consegue mais sair porque se enrolou com a vida aqui. Porque eu não lembro de nada, porque quando eu lembro é em terceira pessoa, e porque falar de mim no passado me dá alguma sensação de outra vida, sei lá. E eu nem tô viva há tanto tempo assim pra isso.

    Outro dia, eu vi um amigo de infância no mercado e nós acenamos um para o outro, e eu quis muito falar com ele, mesmo que fosse estranho depois de tanto tempo sem nem trocar uma palavra. No final dos segundos que eu tive para decidir, eu só sai andando para fazer o que eu tinha que fazer. Quando eu voltei uns minutos depois pelo mesmo lugar (arrependida), ele não estava mais lá. E por uma semana, eu tentei escrever uma carta sobre isso, mas teve uma hora que eu me debrucei sobre meu teclado e pensei, "isso é extremamente idiota", porque eu tenho o número dele, moro quase do lado dele, já vi ele na rua outras vezes e conheço ele desde sempre, então por que eu estou escrevendo essa carta melodramática pra ele como se ele fosse um defunto? Mas na outra semana, eu não liguei para ele, não bati na casa dele, não vi ele em lugar nenhum e não pensei nada sobre ele. Não havia nenhum segredo dele que eu me lembrasse.

    Teve uma vez que eu e meus amigos marcamos de fazer uma maratona de filmes em um sábado, tínhamos uns catorze anos. A gente se atrasou muito no dia, descemos do ônibus no ponto errado, quando chegamos na casa minha amiga ainda estava dormindo, e só conseguimos ver dois filmes adolescentes, Meninas Malvadas e Curtindo a Vida Adoidado. Em todas as cenas do último filme, a gente dizia, "vamos fazer isso algum dia", eu quis muito ser o Ferris Bueller. E trocávamos essas ideias enquanto o filme passava, a gente queria fugir de casa, sair da cidade, alugar uma van e conhecer os estados de onde nossas famílias vieram e todas as praias, virar punks e coisas assim. E minha amiga me dizia: "você? fazer essas coisas? do jeito que você é? eu duvido", e eu jogava minha pipoca nela e dizia "eu vou sim! um dia!". Agora, acho que ela estava certa.

    Eu tenho uma lista de "coisas para fazer antes dos dezoito" e uma carta de 2017 para mim mesma, listando filmes, livros, músicas e amigos. Alguns dos meus desejos são idiotas ("matar aula e ter um dia igual curtindo a vida adoidado"), mas eram mais fantasias que desejos. E eu não tenho mais os mesmos amigos, gostos, tudo parece tão diferente. Acho que o defunto sou eu, eu que sou outra pessoa, eu que sumi, perdi meus amigos, mudei meus gostos e tudo mais. Mas minha vida não acabou (talvez nem tenha começado direito ainda) porque eu estou aqui, tentando entender como continuar vivendo com essas coisas. Enquanto eu puder me perguntar "como eu sigo minha vida?", acho que significa que eu estou viva.

    O assunto de passado e arrependimento nunca se esgota, porque eu continuo escrevendo e escrevendo e nunca chego no ponto final. Mas eu andei notando que o assunto nunca é mesmo o passado, é o "e se". E se eu tivesse sido desse jeito, feito isso, não tivesse passado por isso, e se eu tivesse dito "oi" naquele mercado, se eu não tivesse sido covarde. O "poderia ter sido" guarda muito mais possibilidades e é muito mais atraente e louco do que o que "é". Ao mesmo tempo, nós estamos sempre nos tornando coisas, estamos sempre no limiar entre o que somos e o que podemos ser. E o "o que pode ser" guarda ainda mais possibilidades e é muito mais atraente, fascinante e acessível do que o "o que poderia ter sido".

    Ah, eu não confio mais em filmes adolescentes. Ninguém notou ainda que eu não pareço em nada com seja lá quem estava antes, então okay. E tenham eles esquecido ou não, os segredos que eu contei para os meus amigos não são mais os meus também.
Mari, 16.07.2021

5 comentários:

  1. Olá Mari!
    Apareci aqui mais uma vez e mais uma vez chego a conclusão de que você usa as palavras de uma maneira muito interessante para descrever seus pensamentos. Sério, ler uma postagem sua me lembra muito de certos pensamentos que eu costumava ter e isso por si só é algo muito interessante, pois acho que todos tivemos momentos assim em algum momento da vida sendo muito cedo ou muito tarde.

    E eu iria até mais longe do que você na introdução, eu não era covarde mas sim a mais careta do meu círculo de amizades - ainda sou aliás, mas isso é detalhe nem tenho mais contato com grande parte dele. Eu só sou uma pessoa que gosta de conforto e não o troco por uma vida cheia de aventuras, não mesmo, e só entre a gente aqui, provavelmente levaria muito tempo até eu me acostumar a uma realidade punk quando cresci desse jeitinho haha.

    Mas ler essa postagem foi algo muito bom, obrigada por ter se dado tempo em escrevê-la Mari ♥ e ai, as piadas que giram em torno do nome do Kurapika não perdem a graça nunca! O melhor disso foi a JBC tentando amenizar o marco do nome dele colocando "Kurapaika" na tradução. AMO. RKOIWEKRWIRKEW

    Abraços!

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    1. oi, Snow!
      obrigada pelo comentário, eu fico feliz em saber que o texto despertou esses pensamentos e lembranças em ti. e sinto o mesmo lendo seu blog, traz essa sensação boa :)
      eu gosto de conforto também, embora eu ainda seja curiosa por aventura, mas eu também levaria tempo pra me acostumar, fica para os sonhos mesmo
      as dublagens de hxh faziam isso também!! fica engraçado demais JKIJKK
      abraços! <3

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  2. Nossa, que texto incrível! Ultimamente ando tão imersa nesses "e se". Antes de 2020 muitas mudanças já estavam mexendo no conforto que a minha vida estava e acho que eu simplesmente não assimilei tudo tão rápido e ando tão reflexiva... ou será que isso é parte de nossa personalidade? Vejo que alguns apenas seguem a vida, e outras pessoas gostam de ficar refletindo.

    Seu texto me lembrou uma música que um trecho é: "as possibilidades vão perseguir o que a gente escolher". Não é que é verdade? No fundo a gente sabe que a vida vai acontecendo mas sempre se pergunta o danado do "e se".

    Abraços <3

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    1. oi, Liz! ás vezes, a vida muda tão rápido que é difícil assimilar. acho que em algum ponto, todo mundo reflete isso um pouco, mas talvez em níveis diferentes mesmo
      eu não conheço a música, mas vou procurar para ouvir, o trecho é bem interessante :) enfim, obrigada pelo comentário e abraços! ♥

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