Uma carta

 Querida T.

 Escrevo a você porque anda muito difícil escrever a mim. Faz um tempo que ando em silêncio. As palavras me deixaram. Aliás, não sei bem se posso dizer assim. Você diria que é minha culpa mesmo.

 Existem coisas que eu não ouso dizer a mim mesma, um espaço. Pode ser que todo mundo tenha essas coisas, até mesmo você, mas eu comecei a sentir a distância entre quem eu sou e quem eu estou sendo (ou quem eu aprendi a ser, ou quem eu acho que devo ser). Esse espaço que permite todas as coisas de se acumularem nele,  como papéis cheios de escritos ruins jogados ao ermo numa fronteira inacessível. E isso é minha culpa: deixei muita coisa para trás. Fiz de mim mesma uma terra arrastada, e tentando voltar a mim, me sinto estrangeira, e presa na estrada. E não há nada que esteja no exato lugar onde eu deixei. Acho que preciso de um tempo para aceitar que as coisas não voltam mais.

 Ah, mas é um pouco o conflito típico: as coisas estão mudando. Vou me formar, arrumar um emprego, fazer um vestibular, ir para uma faculdade,  orgulhar meus pais (ou tentar). E quase nada ao meu redor será igual, novamente. Tudo muda, e com toda razão. Imagino que você passou por isso algumas vezes, mas como você está morta, as coisas não devem mudar tanto assim para você faz um tempo. Mas ainda me pergunto se  qualquer coisa ainda muda, às vezes, mesmo num nível microscópico de decomposição, que você nem conseguiria sentir ou perceber se pudesse. Quem sabe.

 Aliás, não leve a mal. Embora eu te escreva essas palavras de dúvida, solidão e medo juvenil pós-apocalíptico, eu ando vivendo, bem, sim, quietamente. Voltei a assistir tevê e descobri que gosto de barras de cereais, pegar ônibus vazios e falar com as pessoas, uma vez ou outra. Talvez esse seja meu ponto de partida para algum lugar. E eu tenho calma. 

 Enfim. Não sei se há um mensageiro cósmico que leve essas palavras à você, mas há muito que não sei, de verdade. E também não gosto das palavras que escrevi, mas se algum dia elas fizerem um eco em algum crânio, valem a pena serem escritas, não?

 Com amor,

 Maria.