Memórias gelatinosas

    É uma meia-noite entre quinta e sexta e estou conferindo os arquivos do meu velho pen-drive. Entre as várias pastas mal organizadas, encontro uma só de fotos, tiradas pelos celulares antigos da minha mãe e o meu; a maioria delas é de, mais ou menos, cinco a um ano e meio atrás.
    Abro uma foto que me faz lembrar de uma história engraçada de quando eu tinha catorze anos. Algo marcante até, mas esquecido, nada que eu pense nos dias normais. Abro outra que me faz pensar "como assim isso foi no ano retrasado?". Eu nem lembro nada da maioria dos dias entre essa foto e hoje, para onde foi todo esse tempo?
    Pelo resto da semana, eu tenho alguns fragmentos de memória em horas aleatórias, seja lendo um mangá ou varrendo a casa. Memórias que, não que eu tivesse esquecido; acho que eu só não tinha o costume de pensar tanto sobre. Junto delas, um turbilhão de sentimentos calorosos de alegria, tristeza, saudade, arrependimentos. E por cima de tudo isso, algum canto da minha cabeça que não foi afetado por essas sensações diz "ei, por que eu tô pensando tanto nisso do nada?".
    
    ei, por que eu tô pensando tanto nisso do nada?
    (uma explicação mais ou menos científica)
    Para responder essa pergunta, eu enchi meu histórico de pesquisas com coisas como "por que eu me lembro de coisas", "o que é memória" e "como funciona a memória".
    A primeira coisa que eu aprendi é que o cérebro não é igual a um pen-drive. Não existe uma área onde memórias são armazenadas, e sim várias ligações sinápticas entre diferentes neurônios e áreas, um conjunto de imagens, sons, sensações, consciência e inconsciência que se unem e formam o que chamamos de "memória". É um processo muito complexo, difícil de entender para um leigo (como eu) e até hoje estudada por pesquisadores.
    Ah, e se a mente fosse como um computador, ela com certeza não teria 80 gigabytes de memória, como em Johnny Mnemonic.

o filme que previu que em 2021 pessoas seriam pen-drives de 80GB
    Existem muitos jeitos de classificar a memória humana, mais que eu imaginava até. Uma dessas divisões (e talvez uma das mais importantes) é a explícita x implícita.
    Basicamente, você pode dizer que a memória explícita requer uma consciência maior dos eventos, e a implícita é mais ligada a repetições e padrões. Por exemplo, quando se está aprendendo algo pela primeira vez, você tem mais "consciência" pois você precisa, no mínimo:
  1. Prestar atenção em quem está te ensinando (seja uma pessoa ou um manual);
  2. Memorizar o que está sendo ensinado;
  3. Tentar fazer o que está sendo ensinado da maneira mais certa possível;
  4. Ficar atento aos possíveis erros.
    E em todos esses passos, seus sentidos e raciocínio estão sendo instigados, porque eles são necessários para o aprendizado. Algumas pessoas lembram bem da primeira vez que andaram de bicicleta, tocaram um instrumento, leram, etc.
    Agora, se você fizer o que acabou de aprender todos os dias e criar uma rotina, com o tempo, você não vai mais precisar prestar tanta atenção no passo-a-passo que você memorizou no começo; você não precisa aplicar toda sua consciência em realizar a ação, pois ela já está "gravada", como um padrão. É por causa disso que uma pessoa consegue andar de bicicleta sem pensar muito na ordem de movimentação de suas pernas, na postura ou como usar o guidão do jeito correto. E enquanto ela usa essa memória implícita, ela pode "colocar" sua consciência em outras coisas, como conversar, olhar os arredores, etc. De certo modo, nós estamos sempre usando esses dois tipos ao mesmo tempo, em diferentes níveis.

    uma rápida análise de coisas lembradas e esquecidas
    Na mesma medida que eu me lembro, eu sei que há um universo inacessível de esquecimentos. Esquecer também é parte do processo da memória; "descartamos" o que consideramos informação inútil para ter mais espaço para coisas que importam; coisas que engajam nosso raciocínio, emoção, sentidos e tudo mais.
    Por exemplo, eu não lembro quase nada de como era ir até a escola. Todos os dias, eu fazia o mesmo caminho, na mesma hora. Eu lembro um pouco de quando fiz esse caminho pela primeira vez, prestando atenção na hora, na paisagem ao redor, no quão seguro era andar por ali; escrito o passo-a-passo, ir para a escola se tornou uma ação automática, que eu poderia fazer até dormindo. E na maioria dos dias, nada que valesse lembrar acontecia mesmo. A única ida a escola que eu me lembro com alguma clareza foi uma vez que eu acabei passando por um tiroteio. (e tiveram outros dias, mas talvez eu tenha automatizado a ação de passar por tiroteios também)

(o caminho da minha escola tinha menos sombras)
    Mas não são só coisas repetitivas que ficam esquecidas. Tanto quanto lembramos situações que mexeram com a gente, nós também esquecemos delas. Nós também acabamos esquecendo as partes que compõem o todo das nossas lembranças, o que pode acabar diferenciando a memória na nossa cabeça do que realmente aconteceu. Nós também rimos de coisas que podem ter sido tristes quando aconteceram e vice versa, e nos arrependemos de situações que sabemos que fizemos nosso melhor com o que sabíamos na época. Então, qual o sentido disso?

    é que eu estou sempre invadindo minhas próprias memórias e mudando tudo. 
    Quando eu lembro daquela história engraçada que aconteceu comigo quando eu tinha catorze, eu digo que ela é engraçada porque eu, agora com dezoito, acho ela engraçada. Eu sei que foi uma situação que me deixou triste quando aconteceu, e que por muito tempo eu quis e consegui esquecer; mas minha interpretação sobre tudo que aconteceu ali mudou, porque... bem, eu não tenho mais catorze.
    Eu estou sempre invadindo minhas próprias memórias e mudando tudo sem querer, porque elas não são arquivos de foto em um pen-drive. Diferente delas, que são capturas objetivas feitas por um celular, o que eu lembro são várias combinações de sinapses neurais de cores, sons, sensações, emoções, e da minha consciência (e inconsciência). Memórias são vivas e gelatinosas.
    Por outro lado: até onde se pode confiar nas próprias lembranças, cheias de mutações? Como fazer para evitar que coisas importantes se percam da nossa mente? Como podemos diferenciar a saudade genuína do saudosismo de escape pelo momento atual estar mais difícil que qualquer coisa ruim que tenha acontecido antes?

    ei... por que eu tô pensando tanto nisso do nada mesmo?

Mari, 01.05.21

9 comentários:

  1. eu tenho feito muito isso durante a quarentena, fuçar em fotos antigas. sei lá, acho que porque me conforta, considerando o isolamento.
    sobre memórias, eu também sofro com isso de não lembrar. tenho pouquíssimas memórias de infância, só guardei as mais marcantes (e vergonhosas hahaha), das quais felizmente eu posso rir hoje em dia.
    adorei a explicação científica!

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    1. oi, Letícia!
      ver fotos antigas traz um conforto mesmo agora, acho que até por isso que eu andei vendo tanto. e é bom que pelo menos podemos rir dessas memórias
      obrigada pelo comentário!

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  2. acho que todo mundo tem pensado bastante sobre o passado na quarentena, né? eu tenho tido lembranças que não lembrava de ter e que me foram preciosas.

    achei muito interessante esse post porque é uma coisa que mesmo "sabendo" (acho que todo mundo tem uma vaguíssima ideia do que é memória), nunca consegui pôr em palavras o que penso e modifico nessas memórias. não lembro de praticamente nada nunca, e me sinto muito mal por tentar transformar as memórias ruins em coisas boas. acho que é natural, mas com isso os sentimentos ruins parecem não ter mais motivo.

    enfim, fiquei divagando kjdfksdkfds

    até mais!

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    1. passando rapidinho pra te indicar uma tag <3 clique

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    2. oi, Victor!
      que bom que você andou lembrando de boas coisas! acho que essa tá sendo uma experiência comum mesmo
      eu entendo isso de se sentir mal por transformar as memórias. acho que é ruim quando a situação se perde na nossa cabeça, mas os sentimentos ruins ficam por mais tempo; é natural, mas estranho também
      obrigada por me marcar na tag!!
      abraços ♥

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  3. Oi Mari!

    Não consigo acreditar que você tenha 18 anos e escreva tão bem! Também não acredito que você tenha presenciado vários tiroteios!

    Achei bem interessante sua pesquisa sobre a nossa memória. É legar ver como a gente vai se desenvolvendo e que certas coisas já não são tão constrangedoras ou relevantes quanto antes. Me identifiquei com isso. Mas infelizmente não consegui me identificar com a parte da bicicleta, porque eu não sei andar haha

    Boa semana pra você ♥

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    1. olá, Cláudia!
      obrigada pelo elogio! onde eu moro é um pouco perigoso mesmo :/ mas eu sai bem nessas vezes
      fico feliz que você tenha gostado e se identificado!
      abraços ♥

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  4. Primeiramente, me permita dizer que adorei ver os meninos de Doukyuusei no seu layout Mari! Sério, assim que entrei no seu blogue, vê-los me deu a impressão de que gostaria de ler o que quer que você viesse a publicar - resumindo, bom gosto hah.

    E eu só vim comentar aqui primeiro pois o título me chamou a atenção e realmente, foi algo muito gostoso de se ler pois normalmente, a única pessoa com quem converso sobre esse tipo de assunto é o meu pai (que sempre me cobra exercícios para aquecer a minha memória) logo, ler alguém pesquisando sobre, correndo atrás dos porquês deu até uma motivação a mais em dar aquele gás nas minhas sinapses :B

    Consigo concordar com muitas coisas que você escreveu mas, por algum motivo, eu consigo ter uma memória bem afiada para muitas coisas que vi, ouvi ou até mesmo li, e percebo que algo que acaba sendo um fator decisivo nisso é a emoção ou sentimento que tive naquele momento - e as vezes me lembro de coisas realmente pífias e acho o maior sarro! Mas isso em nada invalida o seu ponto de vista, muito pelo contrário, ver que alguém também tem certo interesse momentâneo nisso é algo bacana de se ver por aqui.

    E respondendo as suas perguntas ao final, a diferença quem dá é você mesma. Independente de ser algo positivo ou negativo, quem decide se a memória é integra ou formulada, adicionada é o seu senso mesmo, ao menos é o que eu penso.

    Abraços,
    Snow!

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    1. oi, Snow!
      obrigada pelo elogio ao layout! confesso que também me interessei no seu blog pelo nome, é um anime/mangá muito bom mesmo
      fico feliz que você gostou do post. acho que cada um de nós tem experiências diferentes com a memória, por ser algo bem particular, e achei interessante ler a sua. às vezes nós lembramos bem de coisas banais mesmo, e é engraçado isso, a emoção pode influenciar muito mesmo
      enfim, obrigada pelo comentário e pela resposta!! abraços

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