Ghosts, de Chase Harris. |
I. Erwin Schrödinger foi o físico que desenvolveu o famoso paradoxo do "gato de Schrödinger". Ele dizia que, hipoteticamente, se você colocasse um gato em uma caixa com radiação e veneno, ele não estaria nem vivo, nem morto – de certo modo, ele estaria vivo e morto ao mesmo tempo. Só quando se abrisse a caixa, um dos resultados apareceria ao observador, acabando com a dualidade. Esse experimento mental não é bem sobre gatos, na verdade tem mais a ver com física quântica. Mas acho que é mais cômico, cruel e fácil de entender com gatos. Eu prefiro pensar que é sobre gatos.
II. As paredes andam parecendo mais espessas na minha casa. Acho que eu coloquei alguns centímetros a mais nelas, mentalmente. Tudo parece menor e mais apertado, como uma caixinha de sapatos. Tudo parece mais difícil de ultrapassar. As portas andam mais pesadas. Os fantasmas quando passam pelas paredes devem encontrar uma resistência maior por aqui.
III. Um parente meu faleceu há um tempo atrás. Mas ele havia morrido há muito mais tempo. Cinco meses antes. Só soube por um tio que achou o número de casa por acaso. Não éramos próximos, poucas vezes nos vimos, pois ele vivia em outra cidade. Durante esses meses sem ter ideia do ocorrido, eu e minha mãe (de quem ele foi padrasto) conversamos sobre ele duas vezes. Nessas conversas, nas memórias de infância dela, ele estava vivo. Até nos perguntávamos o que ele devia estar fazendo. Por meses, ele esteve vivo e morto – ambos e nenhum dos dois. Acho que pressupomos que as pessoas estão vivas porque pensamos nelas assim. Quando soube do falecimento, eu me senti triste, mesmo sem a proximidade; e depois de notar todo esse tempo onde essas duas oposições coexistiram, me senti como o observador que abre a caixa e encara a única realidade. Só pode haver uma. Cheguei a pensar que se eu não tivesse atendido a ligação naquele instante, talvez ele continuasse vivo por mais algumas horas, dias ou meses. Mas isso não mudaria nada. Eu sou só uma observadora.
IV. Acho que conheço todos os meus fantasmas. Mesmo os que não sei o nome. E só vêem fantasmas aqueles que acreditam. Como os pássaros. Essa é a regra da observação de espectros: se você não acredita em fantasmas, você não os vê. Quando falo de fantasmas, não falo só dos que se foram, embora alguns realmente tenham ido. Falo do que é incorpóreo; o que não posso mais perceber pelos sentidos. As pessoas falecidas se encaixam nisso, claro. Mas também se encaixam nisso todos os amigos que perdi, cujas fotos guardadas em caixas de sapato são tudo que restaram para mim; todos os momentos passados que não são mais tangíveis e as sensações intocáveis. Todas as coisas cujos vestígios de suas presenças ficam memorizados. Os vivos também dão bons fantasmas. E o fantasma, ele não está em nenhum estado. Está além da realidade. Em uma caixa. Distante.
V. Mesmo com todas as incertezas que compõem a linha tênue do real, eu vivo. Acho que o irreal também faz parte da vida. Amo quase todas as pessoas vivas e faço questão que elas saibam disso. Eu também choro os falecidos, e preservo suas memórias, porque elas ficam. Quanto aos fantasmas, um dia, eu vou abrir essas caixas escondidas e saber de seus verdadeiros estados. Mesmo que eu tenha medo dos resultados. Mas talvez eu pare de me importar e eles fiquem muito entediados comigo e se mandem. Por fim, sobre os gatos: nem tentem colocá-los em caixas.
V. Mesmo com todas as incertezas que compõem a linha tênue do real, eu vivo. Acho que o irreal também faz parte da vida. Amo quase todas as pessoas vivas e faço questão que elas saibam disso. Eu também choro os falecidos, e preservo suas memórias, porque elas ficam. Quanto aos fantasmas, um dia, eu vou abrir essas caixas escondidas e saber de seus verdadeiros estados. Mesmo que eu tenha medo dos resultados. Mas talvez eu pare de me importar e eles fiquem muito entediados comigo e se mandem. Por fim, sobre os gatos: nem tentem colocá-los em caixas.
Mari, ao longo de um mês inteiro.
Ah, Mari, que postagem gostosa de se ler ♡ Eu adoro esses devaneios que viram crônicas assim. E concordo contigo, sobre a existência pelo viés da crença... A forma como nos situamos no mundo e o interpretamos define muita coisa. Tudo, na verdade.
ResponderExcluirUma abraço enorme para você. Continue registrando!
tua escrita é tão bonita e redonda, é lindo como tudo se encaixa c: acho que por isso eu não me considero como alguém que escreve mesmo gostando de escrever. adorei a comparação do gato de Schrödinger com essa perda, me lembrou aquela piadinha boba de que tu não tem doença nenhuma se não for no médico e ele te dizer isso. estou pensando sobre essa coisa do gato até agora, eu já conhecia e tudo mas parece que desvendei outra parte com o que tu escreveu.
ResponderExcluirrealmente, os gatos vão sozinhos para caixas, eles sabem muito bem a hora de tudo e como estão se sentindo.
espero que fique bem <3
sempre que eu entro aqui me encanto um pouco mais. sua escrita é tão bonita e profunda. essa relação que fez entre o paradoxo do gato de Schrödinger e o falecimento do seu parente... estou sem palavras. inclusive, sinto muito.
ResponderExcluireu acredito em fantasma, talvez por isso eu sinta arrepios ao longo do dia. acho que fantasmas, espíritos, guias, anjos ou seja lá qual for o nome que as pessoas dão, alguns deles tentam nos dar sinais, quem acredita neles que se esforce pra ouvi-los e encará-los.
e concordo plenamente, nada de colocar gatos (nenhum animal, na verdade) presos em caixas.
um abraço!
1. Algumas experiências de antigamente me deixam totalmente perplexa, arrepiada e horrorizada. Para os dias de hoje isso é muita maluquice, coitado do gato! 2. Sinto um pouco dessa sensação, da casa estar menor. É tanto tempo de convivência com a minha irmã que sequer conseguimos fugir uma da outra quando não estamos trancadas em nossos quartos. Nota: O meu quarto já é algo totalmente explorado por mim. 3. Interessante a forma como você encarou a situação. Isso de que pensamos que as pessoas estão vivas porque ainda as imaginamos vivas é verdade. A frase "Elvis não morreu" pode comprovar essa teoria. 4. Penso que é bom que conheçamos nossos fantasmas, saber lidar com as memórias do passado sem arrependimento, as pessoas que se foram, olhar para as nossos erros e traumas e pensar que foi isso que nos tornou o que somos hoje. 5. Amei o desfecho, Mari. Um enorme beijo pra ti ♥ Espero que esteja tudo bem com você nessa quarentena.
ResponderExcluirCaralho!! (perdão pelo palavrão) Que postagem incrível! De verdade, não sei o que dizer porque é exatamente o que estou sentindo. Tem um trecho de uma música do sleeping at last que acredito que expresse muito o tópico IV: "i don't know who i am, but now i know who i'm not [...]".
ResponderExcluir"[...] sobre os gatos: nem tentem colocá-los em caixas." Não é necessário, eles vão sozinhos. Espero que esteja bem.
Cordialmente, Amanda || https://occhiolismus.blogspot.com/
Acabei de conhecer o seu blog, e eu gostei bastante, eu tenho um gato e o nome dele é Jane.
ResponderExcluir𝕸𝖆𝖑𝖚: f-luffyglow.blogspot.com